A exclusão do ISS da base de cálculo do PIS e da Cofins

A exclusão do ISS da base de cálculo do PIS e da Cofins

Por Alessandra Okuma e Paula Regina Peres Coppini (Fonte: CONJUR)

Recentemente tivemos mais um julgamento que teve contornos dramáticos no Supremo Tribunal Federal: o RE 592.616-RS, cuja repercussão geral foi reconhecida (Tema 118).

O referido recurso extraordinário questiona a constitucionalidade da inclusão do Imposto Sobre Serviços (ISS) na base de cálculo das contribuições referentes ao Programa de Integração Social (PIS) e à Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins). A discussão do ISS é consequência da decisão do RE nº 574.706, Tema 69, que fixou seguinte tese: “O Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) não compõe a base de cálculo para efeito de incidência do PIS e da Cofins”.

As razões de decidir expostas no famoso leading case da “tese do século” estão sintetizadas no voto da ministra relatora Cármen Lucia, a saber:

“Toda essa digressão sobre a forma de apuração do ICMS devido pelo contribuinte demonstra que o regime da não cumulatividade impõe concluir, embora se tenha a escrituração da parcela ainda a se compensar do ICMS, todo ele, não se inclui na definição de faturamento aproveitado por este Supremo Tribunal Federal, pelo que não pode ele compor a base de cálculo para fins de incidência do PIS e da Cofins” (STF, RE 574760-RG, Tribunal Pleno, relatora ministra Cármen Lucia, j. 15/3/2017, DJ 2/10/2017, p. 16-17)

Naquela oportunidade, os conceitos jurídicos de receita e faturamento que são bases de cálculo do PIS e da Cofins foram debatidos à exaustão no Plenário, que, por maioria, decidiu que é inconstitucional a inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins, vencidos os ministros Edson Fachin, Roberto Barroso, Gilmar Mendes e Dias Toffoli, sendo que o último inclusive apresentou aditamento ao seu voto, na última sessão de julgamento, para complementar as razões de sua divergência.

O Supremo Tribunal Federal examinou com profundidade o tema duas vezes: a primeira no julgamento do RE nº 574.706, a segunda nos embargos de declaração opostos. Foi definido que o conceito de receita é caracterizado por dois elementos essenciais, evidenciados no voto do ministro Celso de Mello no RE 574.706:

“Inaceitável, por isso mesmo, que se qualifique qualquer ingresso como receita, pois a noção conceitual de receita compõe-se da integração, ao menos para efeito de sua configuração, de dois elementos essenciais : a) que a incorporação dos valores faça-se positivamente, importando em acréscimo patrimonial; e b) que essa incorporação revista-se de caráter definitivo” (p. 176, grifos das autoras).

Por conseguinte, só são receitas os valores incorporados positivamente e em caráter definitivo ao patrimônio contribuinte. O ICMS, que transita na contabilidade, mas é recolhido ao erário público, não é receita e deve ser excluído da base de cálculo do PIS e da Cofins.

Vale relembrar que não é de hoje que os conceitos jurídicos de receita e faturamento são debatidos pelo STF. Originalmente, a Cofins (LC nº 70/91) e o PIS (LC nº7/70 e Lei nº 9.715/1998) incidiam somente sobre o faturamento das empresas, nos termos previstos da anterior redação do artigo 195, I, “b”, da Constituição Federal [1].

Com as alterações promovidas pela Lei nº 9.718/98, o legislador ordinário buscou equiparar o conceito de “faturamento” à totalidade das receitas auferidas pelas pessoas jurídicas, para alargar a base de cálculo de ambas as contribuições, o que foi julgado inconstitucional pelo STF em 9/11/2005 no julgamento dos REs nºs 346.084/PR, 357.950/RS e 390.840/MG, confirmando a jurisprudência da própria corte, segundo a qual o termo “faturamento” (previsto na redação original da CF de 1988 em seu artigo 195, I) significa “receita bruta da venda de mercadorias e da prestação de serviços”.

Mesmo as Leis nºs 10.637/02 e 10.833/03, ao determinarem, no regime não cumulativo, que a base de cálculo do PIS e da Cofins correspondente “à totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica” somente podem alcançar aqueles ingressos que se incorporam definitivamente ao patrimônio da pessoa jurídica, em consonância com a melhor interpretação da nova redação dada ao artigo 195 da CF/88 pela EC nº 20/98.

E mais, de nada adianta o legislador ter incluído dispositivo na Lei nº 12.973/2014, prevendo que, para fatos geradores a partir de janeiro/2015, na receita bruta se incluiriam os tributos sobre ela incidentes, pois isso não faz com que automaticamente o ICMS e o ISSQN possam ser simplesmente “transformados” por disposição legal em faturamento ou receita, já que ofende o artigo 110 do Código Tributário Nacional (CTN) ao subverter conceitos e definições apenas com a finalidade de alcançar valores de titularidade dos estados/Distrito Federal ou das municipalidades [2].

Por todos os ângulos em que se analisa, portanto, tem-se que seja para a expressão faturamento, seja para a expressão receita, a base de cálculo que se adequa ao critério quantitativo da hipótese de incidência das contribuições ao PIS e a Cofins não pode ser composta por valores que não pertencem ao contribuinte, pois são repassados à outras autoridades fiscais.

Aliás, o próprio governo federal, ciente de que tributos que incidem sobre faturamento ou receita não podem alcançar verbas que não se enquadrem nesses conceitos por não integrarem o patrimônio do contribuinte, já considera no texto do Projeto de Lei 3.887/2020 que não integram a base de cálculo da CBS os valores do ICMS [3], do ISSQN e da própria CBS, em alinho com a jurisprudência firmada pelo STF.

Idênticos argumentos aos aplicados ao Tema 69 justificam também a exclusão do ISS da base de cálculo do PIS e da Cofins. O ISS é repassado integralmente aos cofres públicos dos municípios. Não é receita e nem faturamento porque não integra o patrimônio dos contribuintes. Os valores que apenas transitam na contabilidade não representam receitas, motivo pelo qual não podem sofrer a incidência de PIS e Cofins.

O precedente está fixado pela Corte Suprema, com todo rigor do devido processo legal, e deve ser respeitado por força de lei, nos termos do que prevê o Código de Processo Civil (CPC), em seus artigos 926 (“Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”), 927, III, e 928, II.

A coerência sistêmica e o consequente dever de uniformizar a jurisprudência encontra-se presente no artigo 489, §1º, V e VI; no artigo 985, I e II, e no artigo 1.039 do CPC.

Além de ser instrumento para previsibilidade do direito, a teoria dos precedentes implementada pelo CPC é medida de isonomia, pois assegura que aos contribuintes em mesma situação, dar-se-á a mesma solução jurídica.

É dever do Supremo Tribunal Federal respeitar seus próprios precedentes, de modo que seja mantida a segurança jurídica. Esse princípio, aliás, foi bem definido pelo ministro Edson Fachin no recente julgamento dos embargos de declaração do RE 574.706:

“Segurança jurídica corresponde a um estado de estabilização das relações jurídicas em que o cidadão, nomeadamente o contribuinte, espera, de forma legítima, cognoscibilidade, confiabilidade e calculabilidade em relação aos atos do poder público, logo, também do Poder Judiciário” (STF, RE 574706-ED, Tribunal Pleno, relatora ministra Cármen Lucia, j. 13/5/2021, DJ 12/8/2021, p. 89, grifos das autoras)

É exatamente o que se espera do julgamento do Tema 118: que o precedente do Tema 69 seja estabilizado para que os particulares tenham previsibilidade nas relações jurídicas com o poder público.

Nas palavras do ministro Celso de Mello [4], ao Supremo Tribunal Federal incumbe a tarefa, magna e eminente, de velar pela supremacia da Constituição, que não se submete à vontade dos poderes constituídos, nem ao império dos fatos e das circunstâncias.

Tendo em vista que o Supremo Tribunal Federal definiu o conceito de receita para excluir valores que transitam pela contabilidade dos contribuintes de modo transitório, como é o ICMS, esse mesmo conceito deve nortear o julgamento do RE nº 592.616/RS.

O princípio da segurança jurídica, a coerência sistêmica e a proibição de comportamentos contraditórios assim o exigem.

A isonomia preconizada pelo artigo 150, II, da Constituição Federal também ampara a pretensão de exclusão do ISS da base de cálculo do PIS e da Cofins; pois, é vedado instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente.

Se empresas que realizam venda de mercadorias e prestação de serviços sujeitas ao ICMS (como por exemplo, empresas de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicações) podem excluí-lo da base de cálculo do PIS e da Cofins; as prestadoras de serviços sujeitas ao ISS, que é um imposto sobre consumo com características semelhantes, também deveriam ter o mesmo tratamento jurídico.

A discriminação decorrente da denominação do imposto não se justifica. Ambos os impostos incidentes sobre o consumo deveriam ter efeitos semelhantes para os contribuintes e para os consumidores finais.

Essa é a decorrência lógica do artigo 150, II, da CF, assim como da interdição do venire contra factum proprium. Como órgão colegiado que é, responsável pela uniformização da jurisprudência, este STF deve privilegiar a segurança jurídica, como bem apontou voto do ministro Nunes Marques, no julgamento dos embargos de declaração do RE 574.706 (pg. 49).

Note-se que a questão é de extrema relevância para empresas prestadoras de serviços, contribuintes do PIS e da Cofins, bem como do ISS. Segundo dados do IBGE de 2019, temos 1.371.608 empresas prestadoras de serviços no Brasil, que geram receitas da ordem de mais de um trilhão de ao ano.

As conclusões da pesquisa anual de serviços conduzida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) refletem a grandeza do tema [5]. Milhares de contribuintes são afetados pela inclusão do ISS na base de cálculo do PIS e da Cofins: todas as empresas prestadoras de serviços tributadas no regime do lucro real e do lucro presumido, sendo excluídas apenas as micro e pequenas empresas beneficiadas pelo Simples Nacional.

Assim sendo, a decisão do Supremo Tribunal Federal no Tema 118, mantendo a coerência com os próprios precedentes daquela Suprema Corte, notadamente a estabilização do Tema 69, terá efeitos econômicos importantes no resultado das empresas prestadoras de serviços. Mas, as consequências sociais são ainda mais graves. Primeiro, porque atingem milhares de famílias que dependem — direta ou indiretamente — do setor de serviços. Segundo, porque denotam a tendência desta Corte diante de seus próprios precedentes, o que será interpretado pelos particulares como indicador de segurança jurídica.

Em um cenário de crise como o atual, é imprescindível a firmeza das instituições para conduzir o comportamento dos particulares, dando-lhes certeza do direito e previsibilidade nas relações.

Transcrevemos, a esse respeito, trecho do voto do ministro Luiz Fux nos embargos de declaração do RE 574.706, que ressalta a necessidade de segurança jurídica nos tempos atuais:

“O princípio da segurança jurídica hoje é um cânone pétreo constitucional. A Constituição Federal garante a propriedade, a liberdade e a segurança. A segurança jurídica hoje, por meio da jurisprudência, é um fator muito relevante de investimento do capital estrangeiro no país.
O Brasil, no período pós-pandemia, só se vai recuperar por meio de uma estratégia econômica global (…)” (STF, RE 574706-ED, Tribunal Pleno, relatora ministra Cármen Lucia, j. 13/5/2021, DJ 12/8/2021, p. 175).

É imperativo que o Brasil demonstre respeito à tripartição de poderes, à democracia e às instituições para que seja restaurada a confiança no Estado. O Supremo Tribunal Federal tem papel fundamental como garantidor das expectativas legítimas dos particulares, da liberdade e da propriedade, sendo seu dever manter a estabilidade, integridade e coerência do nosso sistema jurídico.


[1] A Emenda Constitucional nº. 20/98 modificou a redação do o artigo 195 da CF/88, de forma a permitir a instituição de contribuições sociais não somente sobre o “faturamento” (redação original), mas sobre o “faturamento ou a receita”. Todavia, A alteração promovida pela EC nº 20/98 no artigo 195, I, “b” da CF/88, de forma a permitir a instituição do PIS e da Cofins também sobre a receita, somente pode ser interpretada no sentido de alcançar quaisquer ingressos pertencentes à pessoa jurídica, ou seja, receita própria, e não receita que pertence ao Estado ou ao Município, como é o caso dos tributos ICMS e ISSQN.

[2] A Lei 12.973 incluiu o § 5º ao artigo 12 do Decreto-Lei 1.598/1977: “§ 5º Na receita bruta incluem-se os tributos sobre ela incidentes e os valores decorrentes do ajuste a valor presente, de que trata o inciso VIII do caput do artigo 183 da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, das operações previstas no caput, observado o disposto no § 4o.”

[3] Projeto de Lei apresentado pelo Poder Executivo em 21/07/2020, que faz parte da primeira fase da reforma tributária e que pretende instituir a Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços — CBS, em substituição às atuais contribuições ao PIS e a Cofins. Atualmente aguardando Constituição de Comissão Temporária pela Mesa.
Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2258196. Consultado em 14/09/2021

[4] “Torna-se essencial proclamar, por isso mesmo, que a Constituição não pode submeter-se à vontade dos poderes constituídos nem ao império dos fatos e das circunstâncias. A supremacia de que ela se reveste — enquanto for respeitada — constituirá a garantia mais efetiva de que os direitos e as liberdades jamais serão ofendidos. Ao Supremo Tribunal Federal incumbe a tarefa, magna e eminente, de velar por que essa realidade não seja desfigurada.” (STF, RE 574760-RG, Tribunal Pleno, relatora Min. Cármen Lucia, j. 15.03.2017, DJ 02.10.2017, p. 176)

[5] Disponível em https://www.ibge.gov.br/estatisticas/economicas/servicos/9028-pesquisa-anual-de-servicos.html?=&t=destaques. Consultado em 10.09.2021.

Alessandra Okuma é mestre e doutora em Direito pela PUC/SP.

Paula Regina Peres Coppini é especialista em Direito Tributário pelo IBET/SP.

Revista Consultor Jurídico

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